É fato que a deterioração do meio ambiente em nivel mundial provocada pelo descarte de resíduos pós-consumo obrigou governos e empresas, de forma global, a adotar boas práticas de preservação ecológica. O resultado dessa mudança de postura pode ser notado quando observado paises como a Alemanha (*) que passou a adotar políticas voltadas à preservação do meio ambiente conseguindo reduzir a existência de 50 mil lixões e aterros sanitários existentes na década de 70 a menos de 200 atualmente, sendo que a cadeia produtiva de resíduos emprega mais de 250 mil pessoas e estimativas indicam que 13% dos produtos comprados pela indústria alemã sejam feitos a partir de matérias-primas recicladas.
Esse movimento de conscietização e sensibilização ambiental chegou ao Brasil e o seu apíce foi a promulgação da Lei Federal 12.305/2010, instituindo no país a Política Nacional de Resíduos Sólidos-PNRS, na qual foram estabelecidas responsabilidades às empresas e ao poder público. Para as empresas, entre outras, foi determinado a viabilização da “logística reversa”, compreendendo a coleta e a restituição dos resíduos sólidos para reaproveitamento, em seu ciclo ou em outros ciclos produtivos, ou outra destinação final ambientalmente adequada, nos termos do inciso XII, art. 3º da citada lei. Ao poder público, entre outras obrigações, sob a ótica tributária, coube estimular o setor privado instituindo normas com o objetivo de conceder incentivos fiscais às indústrias e entidades dedicadas à reutilização, ao tratamento e à reciclagem de resíduos sólidos produzidos no território nacional.
Passados 8 anos, nota-se no país que se de um lado boa parte das empresas produtoras se adaptaram rapidamente e obtiveram relevantes conquistas nesse tema, sendo exemplos, o aumento de cooperativas de catadores, de índices de reciclagem, inclusive premiações e referências internacionais, não obstante as dificuldades de conscietização do consumidor, o mesmo não se pode dizer do poder público, em especial quando se trata da regulamentação sobre os incentivos fiscais, conforme previsto no artigo 44 da Lei 12.305/10, e, em especial, àqueles dirigidos, no mínimo, para simplificação das obrigações acessórias relativas às operações envolvendo a sistemática da logística reversa dos resíduos sólidos.
Nesse sentido, o poder público poderia já ter cumprido entre algumas demandas, pelo menos uma, que se qualifica na categoria de “preferencial”, qual seja, a definição sobre qual tributo, ICMS ou ISS, definitivamente incide, e se é que incide, sobre o material descartado pelo consumidor final, “sem qualquer compensação econômica” e sem valor comercial, tido como uma espécie de “lixo” e que normalmente é reconhecido como resíduos de lampâdas, baterias, velas de parafina, baterias de celulares, embalagens de agrotóxicos, de refrigerantes, de cervejas, de longa vida, geladeiras, pilhas, pneus, etc, que são coletados em diversos pontos do país e seguem posteriormente com destino à reciclagem para fins de cumprimento da exigência legal ambiental.
Essa omissão do poder público em não uniformizar em nível nacional a situação tributária sobre estas operações envolvendo a coleta e tratamento do material descartado pós-consumo, tido como “lixo”, aqui não considerado o resíduo industrial ou operações comerciais, em direção ao reciclador, provoca sérias repercussões, como a insegurança jurídica e a elevação dos custos e investimentos em face da necessidade de se manter estruturas tributárias que acabam por onerar essa importante fase da logística reversa que é a coleta do material inservível e seu transporte até o reciclador.
Isso significa dizer que no caso em tela o resíduo descartado pós-consumo, obtido sem compensação econômica e que se destina ao reciclador, deveria ter facilitado seu processo desonerando-se este de tantas formalidades legais em face do fato que ele só passará a ter valor como insumo após sua entrada em um estabelecimento industrial ou comercial. Tanto é verdade que se um caminhão carregado com este tipo de “lixo” sofrer um acidente na rodovia e a carga se perder, esse sinistro sequer será objeto de indenização do seguro, por uma razão simples, a total ausência de valor comercial para mensurar a apólice.
Essa situação está ocorrendo em função da confusão tributária generalizada que tem sua origem na visão única da logística reversa, sendo necessário, ao contrário, lançar um “olhar fiscal” de forma isolada, em relação a suas respectivas fases, a saber: coleta, separação, transporte, incineração, reciclagem e destinação final, para determinar em relação a cada uma a ocorrência do fato gerador, seja ele do tributo que for, nos termos do artigo 114 do Código Tributário Nacional-CTN.
Esse imbróglio ambiental tributário acabou por resultar em uma cultura de que este material descartado pelo consumidor final, ainda que sem valor e objetivo comercial, na fase entre a coleta até a entrada no reciclador é fato gerador do ICMS, não obstante a regra-matriz do ICMS ser a “circulação” de bens e serviços.
Isso não deveria ocorrer porque os elementos que definem a regra-matriz do ICMS, nos termos do artigo 4º da Lei Complementar 87/96 é a necessidade da ocorrência da habitualidade ou em volume que caracterize intuito comercial, assim como operações de circulação de mercadoria ou prestações de serviços.
Ou seja, para ficar configurada a incidência e fato gerador do ICMS sobre essas operações relativas a esses materiais considerados pós-consumo inservíveis, há necessidade de se identificar em que momento ou fase ocorreu o nascimento do fato gerador. Houve uma “operação”? ou uma “circulação” ou a existência de uma “mercadoria”?
Se atentarmos perceberemos que a coleta e o tratamento desse material, sem valor comercial, com destino ao reciclador, com exceção do transporte intermuncipal e interestadual, não se caracteriza pela existência desses três elementos fundamentais que compõem a regra-matriz do ICMS. No caso em tela, não se encontra presente uma “operação”, visto que não existe um ato jurídico estabelecendo uma transmissão de propriedade desses materiais, também não se reconhece a “circulação”, em razão da inexistência de uma movimentação econômica desses materiais e muito menos vislumbramos nesses materiais uma “mercadoria” porque não existe um objetivo comercial nessa fase.
Assim, no presente caso, não há que se falar em emissão de nota fiscal para acobertar a coleta desses materiais até sua entrega ao estabelecimento industrial ou comercial, pois essa fase, com exceção, como já comentado, do transporte intermunicipal e interestadual, está sujeita ao Imposto Sobre Serviços - ISS, nos termos do item 7.09, da Lista de Serviços anexa à Lei Complementar nº 116/03, qual seja: Varrição, coleta, remoção, incineração, tratamento, reciclagem, separação e destinação final de lixo, rejeitos e outros resíduos quaisquer. Em nossa opinião, para atender provável questionamento do fisco federal ou estadual sobre essa fase da logística reversa, basta um controle de caráter interno emitido pelo responsável pela gestão dos resíduos sólidos, tanto para recepcionar os materiais pelos Centros de Coleta como para transportá-los desse local até o reciclador.
Por conta desse cenário, avista-se um horizonte dividido em duas paisagens, de um lado da estrada, representado pelo setor privado, é a planície fértil e verde de quem colhe bons frutos, um segmento que se adaptou rapidamente e se tornou exitoso em efetuar a gestão de programas de coletas e reciclagem de produtos pós-consumo, em nível nacional, contribuindo para a melhoria do meio ambiente e a saúde humana, e no outro lado da estrada, representado pelo poder público, é possível observar um terreno fértil, mas longe de ser caracterizado de vasto campo trabalhado para uma legislação tributária mais limpa, isto é, ainda está longe em prover as necessídades tributárias para uma sustentabilidade ambiental nacional.
Como demonstração do limo tributário que se espalha pelo ambiente da logística reversa produzindo estranhas obrigações fiscais acessórias desnecessárias, citamos os Convênios ICMS 38/2000, 27/2005 e 33/2010, os quais concedem isenção para saídas de materiais que especificam e oferecem tratamento diferenciado para emissão de nota fiscal de entrada de forma diária ou até mensal para o material coletado e destinado à reutilização, reciclagem, tratamento ou disposição final ambientalmente adequada. Muito bem, é uma situação confusa, pois se não existe incidência do ICMS, não há que se falar em emissão de nota fiscal, individual, diária, mensal, muito menos em isenção do imposto.
É um cenário desafiador o que se coloca diante do poder público que é de se manter em situação de igualdade de desempenho do setor privado nessa seara onde o que está em jogo não é a arrecadação de impostos, até porque nessa fase entre a coleta até entrega no reciclador ela é irrisória, mas sim a manutenção da viabilidade do sistema, em cumprimento da legislação, nos termos do artigo 44 da Lei 12.305/2010 e principalmente, a sustentabilidade ambiental e a proteção às nossas próximas gerações.
A política tributária têm que ampliar seu alcance para abordar mais tecnicamente os sistemas de logísticas reversas e se não há no momento como se adotar novas práticas tributárias, imediatamente para tais atividades com vistas aos benefícios ambientais e sociais oriundos destas, que sejam simplificados as normas existentes para garantir sua expansão e aprimoramento.
(*) fonte: https://www12.senado.leg.br/emdiscussao/edicoes/residuos-solidos/mundo-rumo-a-4-bilhoes-de-toneladas-por-ano/como-alguns-paises-tratam-seus-residuos