Existe um mito muito perigoso, principalmente em países pobres, que é o da meritocracia. A definição estrita do conceito, segundo a Wikipédia é: “Meritocracia é uma palavra formada por mereo (ser digno, merecedor) e o sufixo grego kratos (poder, força)”. Traduzindo, trata-se do alcance do poder pelo merecimento. Segundo esta linha de pensamento, os objetivos são atingidos por aqueles que se dedicam e se esforçam em medida suficiente.
Meritocracia pressupõe um mínimo de igualdade nas condições iniciais. Vamos pensar no Brasil. Segundo o professor Naercio Menezes, atualmente, 20 milhões de jovens, entre 18 e 24 anos, estão entrando no mercado de trabalho, dentre os quais 6 milhões não completaram o ensino médio e 4 milhões já se formaram, mas sem qualificações mínimas para arranjar emprego.
Em uma pesquisa realizada no Ceará, quase 20% das crianças têm algum problema de atraso no desenvolvimento, a imensa maioria entre os mais pobres. Problemas esses que podem ser cognitivos, de desenvolvimento pessoal e de relação interpessoal. O importante é notar que, nestes casos, nem levamos em conta a qualidade do ensino, a criança pobre já chega em desvantagem já no início do período escolar.
A partir daí, as coisas só pioram, enquanto o filho de uma pessoa mais rica estuda em escolas bilíngues, com atividades lúdicas, professores de primeira linha bem remunerados e cheia de recursos tecnológicos, o filho do mais pobre, além de estudar em escolas depauperadas, com professores desmotivados e mal pagos, ainda precisa ajudar no sustento da família, trabalhando paralelamente.
Imagine que, após todo um processo cruelmente desigual, todos os estudantes, das classes mais altas às mais baixas, tenham de disputar a mesma vaga de emprego. Neste momento, surge a bruta narrativa meritocrática: “Quem se ‘esforça’ consegue qualquer coisa”, sempre acompanhada, para ilustrar, do exemplo solitário (e feliz) do “filho do catador de latinhas que passou em Medicina”– um modelo anedótico com poder de ciência.
Nada pode ser mais impreciso e perverso do que jogar nos ombros daquele que foi, desde o início, abandonado pelo Estado o peso de vencer pelas próprias forças. Costumamos chamar quem defende este tipo de abordagem de “liberal de quermesse”, pois conta com pouca visão científica e pouca sensibilidade social.
Como o próprio professor Menezes destaca: “O grande desafio é desenhar e implementar programas baratos e eficientes que funcionem em escala”. O Estado é essencial para diminuir esta diferença e tornar a meritocracia possível. E estamos muito longe disso.
Até lá, é necessário um Estado forte que cuide de vários temas esquecidos no Brasil: primeira infância, a fim de se combater a perda cognitiva nas crianças mais pobres; programas de transferência de renda em grande escala, permitindo que essa criança estude sem precisar trabalhar, mantendo-se, obviamente, a sustentabilidade fiscal; e qualidade da escola pública, o gran finale que dará condições para o aluno se estabelecer no futuro.
E como fazer isso sem punir o fiscal? Simples, exercendo prioridades. Do que precisamos: subsídios a um determinado setor, vantagens fiscais e proteção a um grupo específico ou um exemplar programa educacional de longo prazo?
A pergunta está posta. Só após evoluirmos que poderemos renunciar ao Estado. Até lá, é só discurso vazio.