O novo Imposto sobre Bens e Serviços (IBS) , que pode resultar da reforma dos tributos sobre consumo, só deve começar a ser aplicado no ano de 2025, segundo cronograma considerado possível pelo secretário especial de Reforma Tributária, Bernard Appy.
Em entrevista ao Valor Fiscal, Appy diz que não há prazos definidos, mas uma possibilidade é aprovar a emenda constitucional da reforma tributária sobre consumo na primeira metade do ano.
Depois, no segundo semestre, discutir a reforma da tributação na renda, possivelmente junto com uma mudança na tributação sobre folha.
Uma lei complementar definindo detalhes imprescindíveis para garantir segurança jurídica do IBS, no entanto, só seria enviada ao Congresso Nacional no primeiro semestre do ano que vem. Não haveria tempo hábil para colocá-la em vigor em 2024, avaliou.
Essa legislação complementar deve definir características cruciais do IBS, como fato gerador e base de cálculo.
“É um tributo novo, é preciso fazer isso com muita segurança jurídica para evitar que depois tenhamos litígio.”
A lei também deve dizer o que é destino, diz, definição importante na distribuição federativa da receita.
A promessa de que não haverá aumento da carga tributária na transição para o novo tributo também estará apoiada na lei complementar, que trará em anexo a fórmula de um cálculo, cujo objetivo é assegurar a neutralidade.
É também nessa etapa posterior que será detalhado o ponto de maior interesse popular da reforma, o cashback para a população de renda mais baixa.
O secretário especial da Reforma Tributária não quis comentar se regimes especiais e alíquotas diferenciadas estariam também em lei complementar, conforme o último relatório da Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 110/19.
Na PEC 45/2019, lembrou Appy, no texto que o deputado Aguinaldo Ribeiro (PP-PB) apresentou à comissão mista, já há exceção para um conjunto de setores.
Apesar da resistência de prefeituras à fusão do municipal Imposto sobre Serviços (ISS) com o estadual Imposto sobre a Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) , o secretário avalia que essa é a melhor opção. Para Appy, a reforma perderia qualidade sem a junção.
Em relação aos Estados, Appy diz que há “convergência” sobre pontos importantes. Porém, ainda se busca consenso com governadores novos.
Demanda histórica dos Estados de Norte, Nordeste e Centro-Oeste, a criação de um fundo de desenvolvimento regional para substituir as atuais políticas de incentivos fiscais do ICMS conta com apoio do Ministério da Fazenda. Esses fundos existiriam “enquanto houver desigualdades regionais”.
Leia a seguir os principais trechos da entrevista do secretário especial de Reforma Tributária para o Valor Econômico
A desoneração da folha será discutida junto com a reforma dos tributos sobre o consumo?
Não tem nada definido. No segundo semestre, nós vamos tratar da tributação da renda e, possivelmente, da tributação da folha. Faz sentido tratar as duas junto, porque a tributação da folha é uma forma de tributar a renda do trabalho, ainda que vinculada a benefícios. E, idealmente, a mudança na tributação da folha deveria ser financiada com mudança na de renda. Temos duas bases muito tributadas no Brasil: consumo e folha. Não dá para desonerar a folha e financiar [com aumento da carga] no consumo.
O ex-secretário especial da Receita Marcos Cintra trabalha em proposta defendida por empresas do setor de serviços que coloca a desoneração da folha na primeira etapa da reforma. O setor diz que, se aumentar a tributação sobre serviços, precisa desonerar a folha. Pode haver aí uma moeda de troca?
A discussão setorial acontecerá no Congresso. Não dá para afirmar se haverá ou não aumento da carga tributária sobre serviços sem a definição da reforma. Não queremos CPMF [a proposta de Cintra contempla tributo sobre operações financeiras para substituir tributos federais, inclusive os cobrados sobre folha]. Mas não dá para discutir desoneração da folha sem discutir como pode ser financiada. Não somos contra a discussão. Nossa preocupação é fazer isso de forma fiscalmente responsável.
[Reforma terá] transição longa, mas é claramente uma política para elevar potencial de crescimento do país”
O relatório mais recente da PEC 110 deixa as questões setoriais para lei complementar. O senhor avalia que essa discussão não entrará na PEC?
O relatório da PEC 110 diz que a lei complementar tratará desses regimes favorecidos. O relatório do deputado Aguinaldo [para a PEC 45] tinha benefício temporário por 12 anos para alguns setores: serviço de saúde, de educação, produtos agropecuários e agroindustriais, transporte público coletivo de passageiros , transporte rodoviário de carga, entidades beneficentes de assistência social. Como isso vai ser tratado no novo relatório, eu não sei.
Quando o governo fala em seis meses para terminar de discutir no Congresso a reforma no consumo, está incluindo a lei complementar? Qual o cronograma?
Não. O Arthur Lira [presidente da Câmara, PP-AL] diz que pretende votar [a emenda constitucional] em maio. Não sei qual será o tempo no Senado. Se votar a lei complementar no primeiro semestre de 2024, é bom. Politicamente, a emenda é complexa. A lei complementar é politicamente mais simples, mas tecnicamente mais complexa. Tem de ter tempo para discussão bem feita e tem de trazer Estados e municípios. Não é uma construção em que o Ministério da Fazenda vai atropelar outros entes da Federação.
Por que a lei complementar é tecnicamente mais complexa?
Porque envolve dimensões de como vai funcionar [o novo tributo]. Como vai ser o conselho federativo, definições claras sobre fato gerador, base de cálculo. É um tributo novo, é preciso fazer isso com segurança jurídica para evitar que depois tenhamos litígio. Vai ter de definir o que é destino, ponto extremamente importante, que precisa estar muito bem redigido porque tem efeito na distribuição federativa da receita.
A definição da lei complementar pode correr paralelamente à reforma do Imposto de Renda?
A ideia é aprovar primeiro a emenda constitucional da reforma do consumo e depois, o Imposto de Renda [IR]. Se o IR for rápido, até o fim deste ano, talvez a discussão da lei complementar possa ser feita depois. Podemos mandar no começo do ano que vem o projeto de lei complementar, para votar no primeiro semestre. É um exemplo. O prazo não está definido. Não vejo problema em ter IR e lei complementar tramitando simultaneamente, mas também não acho que precise acontecer isso. Pode ser que sejam feitos em sequência.
Mas se a lei complementar fica para o primeiro semestre de 2024, o IBS entra só em 2025?
Provavelmente, sim. Não há tempo hábil para a mudança na tributação do consumo ter efeito ainda em 2024.
O senhor falou em insegurança jurídica. Secretários de Fazenda dos grandes municípios dizem que vão judicializar uma eventual fusão do ISS com o ICMS. Como o governo responde a isso?
Se houver judicialização, que seja resolvida o mais rápido possível, para poder ter segurança jurídica na hora que o novo sistema começar a funcionar.
É possível manter o ISS?
Não. Achamos que se perde muito dos efeitos positivos da reforma. Seria ruim do ponto de vista do crescimento econômico e federativo, porque criaria competição entre Estados e municípios. Estamos dispostos a conversar com os municípios, entender suas preocupações e, na medida do possível, atender às demandas.
Que garantias temos que essa reforma não vai trazer aumento de carga tributária?
Isso está no texto constitucional, que é redigido para garantir que a alíquota de referência, que é aquela que é adotada automaticamente na reforma, mantém a carga. Isso é muito claro.
Não pode subir depois?
Os entes da Federação e a União têm autonomia para fixar sua alíquota acima ou abaixo da de referência, como já fazem hoje. Mas a transição da reforma será feita de forma neutra. Sem tirar a competência dos entes para poder definir sua arrecadação, só que para isso tem que ter o custo político de aprovar uma lei que aumenta a tributação do consumo no Estado ou no município, ou no país. Não haverá teto tributário. A questão fundamental é que o poder de compra da família pobre vai ser maior com a reforma do que sem”
A carga tributária neutra não corre risco de virar texto normativo sem aplicação prática, como é hoje a não cumulatividade?
Não. Vai ter um conceito na emenda constitucional e, na lei complementar, vai ter um anexo com fórmula. Um parâmetro absolutamente objetivo de como vai ser mantida a neutralidade da carga tributária. Não faz sentido colocar uma fórmula na Constituição.
E qual carga tributária será considerada? Os Estados dizem que a receita deles caiu. Vai ser levada em conta essa base deprimida?
Será discutida no Congresso. Houve Estados que aumentaram alíquotas e não sei qual o efeito disso. Mas ao longo do tempo a arrecadação dos cinco tributos que devem ser substituídos - PIS, Cofins, ISS, ICMS e IPI - tende a ficar sempre perto de 12% do PIB, embora haja flutuações.
Como a reforma se relaciona com o arcabouço fiscal? Pelo que se sabe, o arcabouço vai depender do aumento da arrecadação. Vão aumentar a carga tributária para poder aumentar gastos?
Não sei. É preciso ter o arcabouço fiscal, ele ainda não existe. O que tem é o compromisso, que está claríssimo, que a transição na reforma da tributação sobre consumo vai ocorrer sem aumento de carga tributária. A reforma tem um efeito muito positivo sobre o crescimento da economia, na distribuição de renda e na redução de desigualdades regionais. Mas é preciso entender que os efeitos da reforma são de longo prazo. Há transição longa. Não estou falando da transição de receitas para Estados e municípios. Mesmo para a sociedade, é uma transição em alguns anos. Pela PEC 45, são dois anos de teste mais quatro de transição. Na PEC 110, são dois testes mais cinco de transição. É uma transição longa, mas é claramente uma política para aumentar o potencial de crescimento do país.
Há cálculo sobre isso?
Há estudos feitos quando eu estava no CCiF [Centro de Cidadania Fiscal, do qual Appy era diretor até sua nomeação para o cargo de secretário]. Há estudos que pegam uma parte dos efeitos da reforma. Por exemplo, um estudo do Edson Domingues e da Débora Freire Cardoso [estudo que Domingues e Débora fizeram na Universidade Federal de Minas Gerais; hoje Débora é subsecretária de Política Fiscal no Ministério da Fazenda] mostrando que só a eliminação da cumulatividade, basicamente, daria aumento de 4% no PIB potencial. Há um estudo do Bráulio Borges [pesquisador do Instituto Brasileiro de Economia - FGV Ibre] que tenta estimar todos os efeitos e chega a um aumento de 20 pontos percentuais do PIB potencial em 15 anos. É difícil dizer qual é o efeito com precisão, mas eu diria que mais de 10% de aumento do PIB potencial é muito razoável.
Na semana passada foi anunciada uma taxação na exportação de petróleo, por quatro meses. Não é incongruente com essa reforma, na qual um dos objetivos é a desoneração da exportação?
A medida que foi tomada agora é conjuntural, tem finalidade fiscal e temporária. A reforma tributária tem efeito positivo sobre a competitividade de todos os setores da economia brasileira. Não vejo incompatibilidade.
Quando o senhor fala que a reforma vai redistribuir renda, o senhor fala sobre o cashback?
Estou falando também do cashback, que é claramente focalizado. E tem estudos mostrando que a adoção de alíquotas uniformes para bens e serviços teria efeito positivo distributivo também.
Como vai funcionar o cashback e qual o valor que poderia ser redistribuído?
O que vai entrar na emenda em princípio é só o conceito. A calibragem, definição do tamanho, o público-alvo, isso tudo será definido depois, com detalhamento em lei complementar. O conceito do cashback é a devolução do imposto incidente no consumo das famílias de baixa renda. Há várias formas de implementar. Pode-se definir um público-alvo, um limite de devolução do imposto, porque não pode ter uma conta em aberto. E até aquele limite, por exemplo, todas as famílias dentro do público-alvo terão devolução todo mês. E precisa ser mensal? Não. Hoje pode ser em tempo real. Gastou agora, passou alíquota no sistema, já credita no cartão do programa social. Se tiver sistema para isso, não há problemas. Estamos estudando experiências internacionais. Já agendamos conversa com o Ministério do Desenvolvimento Social. Não sabemos como vai ser, mas o conceito é bom.
Isso pode trazer maior apoio popular para a reforma?
Se estamos falando de uma medida que vai fazer o país crescer 10% ou 20% a mais em 10, 15 anos, temos que fazer a população entender isso. É um desafio nosso de comunicação. Um cashback complementa a reforma, traz dimensão distributiva importante para dentro da reforma da tributação do consumo, mas o maior crescimento da economia beneficia todos. A reforma vai aumentar a renda e o poder de compra de todos.
Mas o cashback é para os mais pobres
A reforma beneficia todos. O modelo aumenta mais renda e poder de compra para os mais pobres do que para os mais ricos. O cashback entra nessa equação.
Mas não é difícil falar de algo que ainda vai acontecer?
: O cashback é algo que as pessoas verão. Vai depender da regulamentação, mas na hora que tiver regulamentação as pessoas saberão como será. A reforma tributária começa a ter efeito a partir de 2025. O cashback começa a funcionar somente com o novo modelo.
Haddad tem falado do IVA dual como mais factível politicamente. Esse já é o entendimento do Ministério da Fazenda?
Do ponto de vista do contribuinte o modelo de IVA único é melhor. Do ponto de vista federativo o modelo de IVA dual tem mais apoio. O que o ministro falou é que ele entende que do ponto de vista político o modelo do IVA dual provavelmente ajuda mais, para aprovação da reforma. Qual vai ser o modelo? Vai ser aquele que politicamente ajuda mais a aprovação da reforma. A diferença entre os dois modelos é enorme? Não. Ela é pequena e esse é um ponto importante. Se tiver uma mesma legislação para os dois tributos, do ponto de vista dos contribuintes, é muito melhor do que o que temos hoje.
O Simples e a Zona Franca serão resguardados?
Simples está resguardado. A empresa do Simples poderá ficar como está ou optar por entrar no regime do IBS. Em relação à Zona Franca há compromisso do governo de que não será prejudicada. Já estamos discutindo com o Estado do Amazonas e com os parlamentares um sistema que garanta no mínimo manutenção dos empregos e da renda gerados hoje no local, com transição suave para as empresas já instaladas. Se chegarmos a uma proposta comum, podemos levar ao Congresso, que pode incorporar ou não. A palavra final é sempre do Congresso.
A reforma chegou a ter o consenso a favor de todos os Estados. Isso se mantém?
As grandes linhas gerais estão bem encaminhadas. Mas há novos governadores e tem pontos nos quais não há posição definida e fechada de todos os Estados.
Fundo regional vai ter?
A posição do governo é de que vai ter fundo de desenvolvimento regional. Os detalhes serão definidos no Congresso. A posição do ministério é que é importante ter o fundo como instrumento para substituir a política baseada na concessão de benefícios fiscais.
Será algo temporário?
Não é temporário. A rigor, enquanto existir desigualdades regionais faz sentido ter um fundo de desenvolvimento regional.
E a alíquota do IBS?
A alíquota de referência, aquela adotada automaticamente, será a que mantém a carga tributária atual. As pessoas precisam entender que já pagamos isso, de um jeito todo torto, de forma não transparente. No longo prazo, o efeito da reforma é de redução do custo do consumidor. Porque hoje a pessoa paga a carga tributária e paga pela ineficiência do sistema. Então se tenho um custo burocrático enorme, isso será reduzido com a reforma, o que tende a ser repassado para preço.
No longo prazo, mesmo mantendo a carga, a tendência da reforma é ser deflacionária. No curto prazo há mudança de preços relativos. A alíquota também é determinada pelas exceções. Quanto mais exceções e tratamentos favorecidos, maior será a alíquota básica para manter a carga. Outro fator é o grau de sonegação e evasão. Nossa avaliação é de quando se simplificam as regras, isso tende a cair. A alíquota será calibrada ao longo da transição. Vendo o efeito positivo da reforma sobre a sonegação, por exemplo, isso se refletirá na alíquota ao fim da transição. Essa é a nossa posição, que o Congresso pode mudar.
Fonte: Valor Econômico